Santuza
Cambraia Naves
O canto das sereias não se parece com os cantos
de trabalho. Não serve para nada a não ser para o gozo.
Numa Ciro
Quando
a conheci, Numa Ciro era concebida como uma figura de palco. Nos bastidores,
voltava a ser Maria do Socorro, psicanalista lacaniana e teórica da cultura.
Aos poucos, Numa Ciro passou a identificar tanto a persona quanto a pessoa, e só no mundo restrito da psicanálise se
proferia o nome Maria do Socorro. Esta transição coincidiu com a sua atitude de
jogar cada vez mais com a indefinição entre a persona e a pessoa, entre o palco e a vida. É bem verdade que as
representações de Numa Ciro e Maria do Socorro já não se diferenciavam no
início: ambas eram performáticas e não havia
distinção entre elas com relação à maneira de se vestir e de se colocar no
mundo, o que não causa espanto, se partimos do pressuposto de que a pessoa é também um artifício (MAUSS
2003). A partir do momento, entretanto, em que a figura de Numa Ciro
se tornou hegemônica, houve uma continuidade mais assumida entre arte e vida, entre noite e dia, pois as atividades de Numa Ciro, a artista, se
conectaram de vez com as da intelectual Maria do Socorro. Este tipo de opção
foi responsável pela guinada de Numa Ciro para uma carreira adicional na área
de Letras.
Não
me parece, entretanto, que a psicanalista Maria do Socorro se coloque num mundo
à parte, alheia à realidade do espetáculo, ou que as figuras engendradas a
partir dela se transformem em heterônimos, à maneira de Fernando Pessoa. O
encontro da psicanalista com a performer
é evidente, por exemplo, nas lembranças evocadas por ela das experiências de
infância e adolescência, em que ajudava a mãe na costura. Sua mãe costurava,
ela fazia o serviço de mão e as duas cantavam juntas enquanto trabalhavam.
Assim, em entrevista concedida ao grupo de pesquisa do qual participo, afirma
que já existia algo de Numa Ciro na “vivência desde criança de cantar em casa”.
Ela relata que, algum tempo atrás, lendo a biografia de Freud, soube que ele “adorava
Yvette Gilbert, uma cantora parisiense amiga de Toulouse-Lautrec”, e que
Toulouse-Lautrec ia aos lugares onde ela se apresentava e a desenhava,
imortalizando-a com as luvas pretas que vemos nas ilustrações. Ao ler a
história de Yvette, descobre que “a mãe dela era costureira, que ela costurava
junto com a mãe e que elas cantavam”.
Numa
Ciro apresenta um perfil polissêmico, e não foi apenas
Maria do Socorro que o inventou; trata-se de uma criação conjunta, com a
participação do artista plástico Hildebrando, da compositora-cantora Tânia Christal,
que lhe doou inclusive o nome, e do músico Flaviola. Tânia Christal, que
dividia com ela um apartamento em Recife, inventou Numa Ciro para si própria,
procurando articular um nome de mulher que jogasse ao mesmo tempo com o
feminino e o masculino. Tânia não fez uso do nome, pois interrompeu por um
tempo sua carreira musical e foi morar na Europa. Assim, numa das ligações
telefônicas entre as duas amigas, Maria do Socorro pediu a Tânia que lhe
cedesse o nome Numa Ciro, no que foi atendida.
Acompanhando a sua trajetória desde a década de 70,
vemos que Maria do Socorro alternava não só a moradia entre Campina Grande e
Recife, como também os papéis de acadêmica — como professora de
psicologia inicialmente na Universidade Estadual da Paraíba, e depois no
Departamento de Educação da Universidade Federal da Paraíba — e de atriz de
teatro. Iniciou sua carreira teatral em Campina Grande com o nome de Socorro
Brito, na peça Quinze anos depois, de
Bráulio Tavares, dirigida por Hermano José; em seguida atuou no monólogo Fiel espelho meu, da dramaturga
paraibana Lourdes Ramalho; e por último contracenou com Selma Tuareg na peça Escombros eletrônicos — um show de
anormalidades. A partir dessas experiências teatrais, começou, em 1984, a
assumir o palco como cantora e performer.
A primeira apresentação foi no show Tangos
fados e boleros punks, que fez com Diomedes “O Dedo de Ouro do Nordeste”, no
Bar Visual, em Campina Grande. No ano seguinte, sob a direção de Carlos
Bartolomeu, fez o show Carta fatal no
Teatro Paulo Pontes, em João Pessoa.
Fez sua estréia no Rio
cantando “Surabaya Johnny”, de Kurt Weil e Brecht[2], na Academia
Brasileira de Letras. Ligada a um grupo de atores e poetas da chamada “Poesia
pornô”, do qual participavam, entre outros, Leila Miccolis e Kairo Assis
Trindade, participou do projeto que se chamou Alcova Brasileira de Letras, que
realizou apresentações do grupo na ABL. Numa relata:
A
Tânia Cristal veio para o Rio antes de mim e conheceu o Hildebrando. Ela falava
dele para mim e dizia que ele é um grande artista e que tem tudo a ver com a
nossa cabeça, com a nossa vida e com as nossas coisas. Ela intuiu assim uma
história entre eu e ele. E quando eu cheguei ao Rio em 85 ela nos apresentou e
ficamos amigos. Em 86, quando me convidaram para fazer esta performance, nós
resolvemos fazer juntos. E por acaso surgiu a história de ele me pintar nua e
de eu cantar. A personagem, a persona
Numa Ciro nasce ali, pois dali em diante ela tem corpo diferente e imagem
diferente. Ela nasce mesmo sem ser nomeada ainda, mas é ali que está a Numa
Ciro.
Eu chegava nua no palco, com um véu, ele botava
o véu em mim.... Eu passava pasta d’água no corpo para dar uma tonalidade, uma
transparência, para não ser carne mesmo. Ali ele me preparava como se eu fosse
tela. Eu entrei no palco com o Austregésilo de Athayde na platéia assistindo.
Tinha uns acadêmicos ao lado dele. O Hildebrando me pintou uma bomba atômica no
corpo. Eu cantava “Surabaya Johnny” com o cabelo curto todo arrepiado,
vermelho.
O
primeiro contato com Numa Ciro me causou a impressão de que sua persona seria construída a partir de uma
identidade gay, talvez pelo fato de
tê-la visto compartilhar o palco do Sérgio Porto com travestis em algum momento
do início dos anos 90. Por outro lado, tínhamos à época vários amigos gays em comum, e todos, sem exceção, a
admiravam. Pensei logo em Susan Sontag (SONTAG 1987) e sobre a possibilidade de
Numa Ciro ser tomada, por um certo reduto gay do Rio de Janeiro, como uma
espécie de ícone da sensibilidade camp,
tal como Carmem Miranda foi incorporada por gays
nova-iorquinos. À medida, porém, que fui acompanhando mais o seu trabalho,
passei a reconsiderar a impressão inicial, ponderando que o entendimento da estética
de Numa Ciro por critérios de opção sexual em muito estreitaria o seu alcance,
principalmente se consideramos a maneira como ela lida com a diferença. As questões
relativas às novas agendas políticas e culturais são contempladas por Numa Ciro
ao realizar a sua proposta estética e construir a sua personalidade artística,
já que o universo em que atua é singularizado pela presença de minorias tanto
étnicas quanto sexuais. Mas ela não se prende, entretanto, a uma configuração
específica, parecendo buscar, pelo contrário, elementos de diferentes
repertórios, tanto os fornecidos por tradições locais, brasileiras ou
estrangeiras, quanto os disponíveis por informações provenientes do mundo
globalizado.
Assim,
observei que este procedimento de Numa Ciro de lidar tanto com o local quanto
com o universal em muito evoca a estética da tropicália, no sentido de ter um
pé em Campina Grande, sua cidade de origem, e outro tanto no mundo erudito da
biblioteca de Borges quanto no submundo dos cabarés. A referência a Campina
Grande não significa um apelo a regionalismos, até porque a cidade, tal como
descrita por Numa, é ela própria uma junção de contrários, oscilando sempre
entre o provinciano e o cosmopolita. É o que diz a letra de “A feira de
Campina”, canção que Numa fez em parceria com Hermeto Paschoal, em que
artefatos artesanais e identificados com a cor local, como a “calunga de pano”
e a “panela de barro”, convivem com objetos modernos — e até mesmo “fashion” — legados pela tradição técnica
ocidental:
NOVENA
OU
A FEIRA GRANDE DE CAMPINA GRANDE
Hermeto Pascoal / Numa Ciro
Quero lhe mostrar nessa cantiga:
Foi na feira de Campina onde o mundo se criou.
Ouça com atenção!
Na minha vida, não vi coisa mais divina
Quando um cego anunciou:
Quem se aventurar nesse mercado
Deixe aqui o seu trocado
Pelo nome de Jesus.
Eu não tive a vossa alegria
De ganhar a luz do dia
A cegueira é minha luz.
Quase num milagre a vista alcança
Os detalhes de uma trança de cebola ou alfenim.
Acocorando escolhe coisinhas de barro
Só pensando na virtude desta mão que fez assim.
No labirinto do roteiro encomendado
Inverte a ordem do traçado quem começa pelo fim.
Corro na barraca de Zumira,
Vou buscar a lamparina,
Severina encomendou.
Olho para os lados, vejo briga,
Não é nada, é a pechincha,
Nada besta o comprador. Quero visitar seu Aluísio,
Comprar queijo de manteiga
Apelidado de Romeu.
Quando ele se junta
Com o doce de goiaba,
Julieta,
Casa quem disso comeu .
Para comprar bode novo, tem lei
Pai-de-chiqueiro, cuidado!
O cheiro é desagradável demais, porém
Buxada é prato de rei.
Pois é!
Dê outra volta pra gula vestir
Carne-de-sol posta em mantas
E as linguiças, gravatas, são fashion, say,
Luiz cantou isso outra vez.
Calungas de pano,
Panelas de barro,
Jarrinhos de louça,
Vestidos engomados.
Pro recém-nascido: toquinha e casaco,
Lá na tenda do cigano há quem leia o passado.
Futuro é do tempo,
Querer é de agora,
Quem vem nessa feira vadia pela hora.
Quem pega em rodilha não teme o balaio,
Fumo de rolo e cachaça espanta o cansaço.
Quanto cobra pelo frete?
Eu lhe pago em dobrado
E dou mil pro assovio.
Jabuticaba, cajá, mimo-do-céu,
Abacaxi, macaíba,
Quebra-queixo, pitomba, castanha e mel ,
Pé-de-moleque e beiju.
Côco-catolé, caju, sapoti
Fuba de milho, sequilho, soda,
Mandioca,
inhame, maxixe, umbu ,
Manteiga-da-terra
e caqui .
Não deixe
a feira sumir
Não deixe
a feira acabar
Campina
Grande é ali
Grande é
a feira de lá
Irene,
num quadro, a feira imortalizou .
Irene não
morre .
É imortal
quem pintou .
Na Feira Grande de Campina Grande canta
Asa Branca, Miudinho, Bem-te-vi, meu Sabiá
Até o Galo de Campina se casou com a Noivinha Coroada
E fizeram ninho lá .
Na Feira Grande de Campina Grande canta
Velho moço e criança, qualquer homem ou mulher .
Até um surdo se esqueceu que era mudo
E de repente cantou tudo ,
Só não canta quem não quer .
Pra quem quiser tocar na feira ,
Na feira encontra a condição .
Tem fole e sopro cordas e teclas ,
O que não falta é percussão .
Para os devotos rezarem Novena,
Da feira sai a procissão .
A catedral é bem pertinho.
A
Padroeira é Conceição.
A
canção programática “Meu nome é Numa Ciro”, de sua autoria, que ela fez em
“resposta” ao desafio “Meu nome é Trupizupe”, de Bráulio Tavares, tem a forma
do martelo agalopado, metro típico da poesia popular nordestina: versos decassílabos
em que o acento recai sobre a terceira, sexta e décima sílabas. Vejamos a estrofe
introdutória, em redondilha maior, na qual a autora se apresenta à maneira do
repentista nordestino:
Meu nome é Numa Ciro
Sou a relva da campina
O meu nome é Numa Ciro
A providência divina
Em seguida, Numa Ciro introduz a primeira estrofe:
Pra cantar desafio estou contigo
Oh poeta que temo e admiro
Estatura não tenho mais prefiro
Ser o anjo que afasta o inimigo
A morada do amor é meu abrigo
O desejo da rima é combinar
O sentido do mote está no ar
Quem pegar na palavra diz o seu
Quem pensar que eu não canto, escute o meu
É com ele que vou me apresentar.
Com relação a
questões propriamente temáticas, observamos que, na quinta estrofe, a imagem
bucólica da “água que chove no roçado” convive com “o remédio que mata a
bactéria”, assim como a “rima das sextilhas” do cordel rima com “Alice no País
das Maravilhas”. Nas dez estrofes que compõem a letra, acompanha-se a tessitura
da persona de Numa Ciro através de
elementos díspares em franco diálogo, vinculados tanto à “tradição” quanto à
“novidade”. A estrofe número 9, por exemplo, comenta de maneira bem humorada a
voga da internet:
Só se fala atualmente em
internete
Endereço eletrônico navegar
Comunica quem aprende a
sitiar
Uma bomba que não mata mas
impede
A conversa cara a cara sem
confete
Pois eu acho esse papo muito
sério
Manuscrito vai perder o seu
império
Sobre isto escrevi sem
nostalgia
Pra não ter nem o atraso de um
dia
Eu mandei-o para Bráulio por
é-méio
A última estrofe (número 10), revela a
identidade constituída por elementos da “alta” e “baixa” cultura, do erudito e
do pop:
Aprendi com minha avó quando
menina
A fazer da cantoria vocação
Assistindo “Retalhos do
Sertão”
Na rádio Borborema de
Campina
Zé Limeira confirmou a minha
sina
James Joyce com Homero foi
casado
Guimarães Flor Lispector
encantado
Eu não posso viver sem
escritura
Se transforma em criador a
criatura
Quando eu canto martelo
agalopado.
Assim, a Campina Grande
representada por Numa Ciro lembra a interpretação do Brasil feita por Oswald de Andrade no
“Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, em que o que há de mais associado às raízes,
como as cantigas de ninar, se adiciona ao “melhor de nossa demonstração
moderna”, do jornal aos “cubos de arranha-céus” (ANDRADE 1972). Mas nos dois
casos — a Campina Grande de Numa Ciro e o Brasil de Oswald de Andrade — não se
articula uma síntese harmoniosa, porém mantêm-se os elementos antinômicos em
constante tensão. Os elementos da cidade vinculados a uma certa tradição do que
reconhecemos como “nordestina”, e mesmo “patriarcal”, são arrolados por Numa:
do colégio de freira, onde estudara, e onde “tudo era proibido”, despertando o
desejo de lidar com o que era interditado, aos bordados extremamente
trabalhados que aprendera com a mãe. Já as contribuições da cultura pop
internacional aparecem num primeiro momento com as revistas em quadrinhos,
principalmente as fotonovelas. Citando trecho da canção “Livros”, de Caetano
Veloso — “Tropeçavas nos astros desastrada/ quase não tínhamos livros em casa/
E a cidade não tinha livraria”[3] — Numa Ciro relata que teve o primeiro contato
com a literatura — Ana Karenina, Pimpinela Escarlate, O corcunda de Notre Dame, A dama
das camélias, Hamlet — através de
fotonovelas. E refere-se também ao cinema, que aprendera a cultuar com uma tia,
principalmente os filmes italianos com Sofia Loren e Gina Lollobrigida.
Como
compositora (letrista), Numa Ciro fez diversas parcerias com Flaviola, e
algumas com Hermeto Paschoal e Tânia Christal. Quando traduz, recria o texto
original. Vejamos como ela própria discorre sobre este procedimento na seção 9 de
“O canto a voz a palavra: anotações sobre a arte de dizer cantando”:
Adoro fazer
versões. Tanto para canções apenas instrumentais, como para aquelas que já
possuem letras, na minha própria e em outra língua qualquer. Por exemplo:
Replicante (“One More Kiss, Dear”), de Vangelis, do filme Blade Runner; “Libertango” de Piazzolla; “Numa Serenata” de Luiz
Gonzaga. Faço um sampler, de trechos ou da música total. Gravo a base do disco
original e canto por cima da base, nas performances e nos espetáculos. Algumas
vezes mantenho na base a voz de um cantor cantando na língua original. Canto
por cima e com isso descobri efeitos intertextuais muito interessantes.
Como
intérprete, recorre a repertórios de poetas modernistas, nordestinos,
dramaturgos e músicos contemporâneos, conseguindo sempre promover a conciliação
de contrários, como a poesia de cordel de Bráulio Tavares com trechos de Ulisses, de James Joyce. No texto citado
acima, Numa Ciro também fala sobre as suas escolhas:
Minha pesquisa
abrange todo e qualquer gênero musical. Do repente ao rap, da valsa ao rock, do
blues ao frevo, e por aí afora, estabelecendo uma relação entre o cancioneiro
popular brasileiro e o estrangeiro, o popular e o erudito, criando com isso um
mosaico provocador e universal. Além de meus próprios textos, trabalho com os
textos de autores da literatura, entre os quais James Joyce, Guimarães Rosa,
Ionesco; da poesia, João Cabral, Tavinho Teixeira, Haroldo e Augusto de Campos,
Augusto dos Anjos, Neide Archanjo, e muitos mais. Já incluí em meu repertório
um trecho do livro As palavras e as
coisas de Michel Foucault (aquele em que o autor descreve o quadro As meninas, de Velázquez).
É
interessante observar a maneira como Numa Ciro, ao se constituir como persona, faz uso dessas informações
contrastantes, procurando, como no processo criativo de uma colagem, dispor os
elementos díspares a partir de uma determinada concepção. No caso, o ponto
articulador seria a noção de “periferia” que, para Numa Ciro, significaria tudo
aquilo que ela via, ao longo de sua experiência, como excluído do modelo
cultural dominante, como a ambiência dos cabarés e as mulheres que os freqüentavam,
e o espaço reservado às empregadas domésticas dentro das casas e da hierarquia
social. Assim, a sensibilidade tropicalista é revisitada através da união de
contrários, porém atualizada, ao escolher os repertórios a serem incorporados,
dos locais aos universais. Por exemplo, um dos ingredientes dominantes, a
tradição estrangeira da chanson,
principalmente a do cabaré alemão, mostra-se em constante diálogo com a
folclórica e com o pop que chega a Campina Grande em forma de kitsch.
Trata-se, sem dúvida, de lidar
com a tradição kitsch do
melodramático, mas de uma maneira estilizada, recorrendo a recursos que lembram
o expressionismo alemão. Numa Ciro, no palco, depura o teor dramático das
canções. O uso da máscara e do figurino contribui para o efeito de
distanciamento, o que também sugere uma apropriação da proposta dramatúrgica de
Bertolt Brecht. Como vemos, tudo parece dialogar com a tradição alemã. O rosto,
sempre pintado de branco, faz ressaltar os olhos coloridos e redesenhados em
preto. E o semblante criado no palco afasta qualquer possibilidade de
representação naturalista; tudo é artifício, tudo é representação teatral. Por
outro lado, a adoção do estilo cool
não lhe retira o senso de humor: Numa Ciro reúne o melodrama pop, o teatro
alemão (o expressionista, o brechtiano e o esquete popularesco de cabaré) e a
carnavalização tropicalista. Neste aspecto, tudo indica que há um traço camp em Numa Ciro, principalmente se
tomamos em consideração a sua atitude de lidar ironicamente com o kitsch. Mesmo porque a sensibilidade camp, detectada por Sontag no meio de certas “igrejinhas” culturais — e homossexuais — de
Nova Iorque, seria fundamentalmente antitrágica, anti‑séria e jocosa. Uma
postura reveladora desse tipo de atitude seria uma incorporação divertida do kitsch, como, por exemplo, através do
ato de deixar à mostra, na sala de visitas, um artefato “típico” do Rio de
Janeiro vendido em loja para turistas. O camp,
aliás, só se realiza, segundo Sontag, com a incorporação do kitsch (SONTAG 1987:318/33).
Retomo aqui o argumento que deu início a este ensaio: ao
incorporar a intelectual Maria do Socorro à sua persona, Numa Ciro promoveu uma junção definitiva entre arte e
vida, entre palco e cotidiano. A atitude performática de Numa Ciro traz à baila
alguns questionamentos sobre o estatuto da obra de arte e do próprio artista que
muitos classificariam como “pós-modernos”. Se não é possível, para os que
comungam este ponto de vista, pensar um espetáculo artístico que se pretenda só
musical, ou teatral, ou mesmo visual, ou que não vislumbre a participação do
espectador como co-autor, e não apenas como fruidor, também não seria possível
pensar a presença do artista no palco a não ser como não-presença, ou seja,
como não-autor, como uma persona que
se constrói recorrendo a diversos textos de diferentes vozes (ver LOPES 2003). Creio
que é mais razoável vê-la como uma artista numa acepção mais ampla, uma performance artist na tradição inventada
por figuras que, como Laurie Anderson, romperam com o enquadramento convencional
do palco. No palco, Laurie Anderson, embora se apresente como tal, e embora
muitas de suas canções e falações sejam na primeira pessoa, nunca é exatamente Laurie Anderson: está claro
que boa parte do que ela conta e canta é fictício, e a voz que ouvimos é com
freqüência distorcida ou engrossada eletronicamente; em última análise, sua performance ao vivo não é exatamente ao
vivo, já que alguns dos sons que a platéia ouve foram previamente gravados ou
preparados. Assim, algumas distinções categóricas — entre real e ficção,
presença e ausência, autêntico e fingido — são desmontadas durante seus
espetáculos.
Numa Ciro apresenta uma identidade múltipla, o que
torna difícil defini-la. Sua atuação não se restringe à atividade de
intérprete, ou mesmo de compositora, principalmente porque ela faz uso da performance. O corpo atua como escrita,
como linguagem; assim, sua persona se
constrói através do figurino, da música, da encenação e da poesia, como ela
explica em “O canto a voz a palavra”:
o monólogo
cantante ou o solo cantátil é um espetáculo de canto a capella, isto é, sem acompanhamento instrumental, onde a voz é o
principal elemento de sustentação do espetáculo, concretizando uma linguagem
cênico-musical em que são incorporados elementos do teatro, da dança, das artes plásticas, da poesia e da
literatura.
A partir do canto, a criação dramática busca uma expressividade que os
elementos interpretativos fundamentam. Assim, o diálogo entre o roteiro musical
e a encenação transforma cada canção, cada texto ou poema numa composição de
quadros que se sucedem no desenhar dos gestos e intenções.
E paradoxalmente — o que faz o encontro entre a
psicanalista (não por acaso lacaniana) Maria do Socorro e a performer Numa Ciro atingir o paroxismo
— a figura construída põe-se a desconstruir uma possível identidade fixa e a
própria noção de autoria. Este procedimento é claro em “Meu nome é Numa Ciro”,
composição citada anteriormente. À maneira de Caetano Veloso, que responde à
canção afirmativa de Gerônimo com relação à identidade étnica e sexual, “Eu sou
negão”, com “Eu sou neguinha?”[4],
canção que prima pela incerteza e pela indefinição, Numa Ciro responde ao
espírito intimidativo de “Meu nome é Trupizupe”, de Bráulio Tavares, que prima
pela caracterização forte do nordestino, com o aspecto indeterminado de uma
paraibana cosmopolita. Esta atitude desconstrutiva é descrita de maneira
programática em “O canto a voz a palavra: anotações sobre a arte de dizer
cantando”, quando Numa Ciro diz: “canto textos poéticos e literários, e declamo
canções”.
Numa
Ciro me contou algo que lhe aconteceu em Paris há algum tempo. Estava numa
livraria e foi abordada por uma francesa que lhe perguntou: “Você é espanhola?”
Numa disse que não, que era brasileira. A interlocutora então lhe disse que ela
parecia uma personagem de Almodóvar. Eu disse a Numa que discordava da
francesa, pois, na minha opinião, ela teria semelhanças com o próprio
Almodóvar.
Referências bibliográficas:
ANDRADE,
Oswald. “Manifesto da poesia pau-brasil”. In
Do Pau-Brasil à Antropofagia e às utopias
— Obras completas-6. Rio de Janeiro, MEC/Civilização Brasileira, 1972, pp.
3-10.
CIRO, Numa. “O
canto a voz a palavra: anotações sobre a arte de dizer cantando”. Mimeo. S/d.
LOPES,
Alexandre Herculano. “Performance e história (ou como a onça, de um salto, foi
ao Rio do princípio de século e ainda voltou para contar a história)”. In O
Percevejo — Revista de Teatro, Crítica e Estética. Ano 11, nº 12, UNIRIO,
Rio de Janeiro, 2003, pp. 5-16.
Mauss, Marcel. “Uma categoria do espírito
humano: a noção de pessoa” [1938] In Sociologia e antropologia. São Paulo,
Cosac & Naify, 2003, pp. 169-397.
SONTAG, Susan.
“Notas sobre o camp”. In Contra a
interpretação. Porto Alegre, L&PM, 1987.
[1]
Agradeço a Numa Ciro, de uma certa forma co-autora deste texto, a Kate Lyra e
Ana Ana Luiza Martins-Costa, que realizaram comigo a entrevista com a artista
(em 12 de outubro de 2006), a Claudia Oliveira, por ter me estimulado a falar
sobre Numa Ciro, a Antonio Herculano Lopes, por ter me auxiliado a pensar a performance, e particularmente a Paulo
Henriques Britto, pela sua assessoria para questões de versificação, entre
outras.
[2] Música da comédia musical Happy end, de Kurt Weill e Bertolt
Brecht, de 1929.
[3] CD
Livro. Polygram. 1997.
[4] LP
Caetano Veloso, de 1987. Philips.
Nenhum comentário:
Postar um comentário