sexta-feira, 24 de julho de 2015

SANTUZA CAMBRAIA NAVES





Numa Ciro, a persona[1]
Santuza Cambraia Naves

O canto das sereias não se parece com os cantos de trabalho. Não serve para nada a não ser para o gozo.
Numa Ciro



Quando a conheci, Numa Ciro era concebida como uma figura de palco. Nos bastidores, voltava a ser Maria do Socorro, psicanalista lacaniana e teórica da cultura. Aos poucos, Numa Ciro passou a identificar tanto a persona quanto a pessoa, e só no mundo restrito da psicanálise se proferia o nome Maria do Socorro. Esta transição coincidiu com a sua atitude de jogar cada vez mais com a indefinição entre a persona e a pessoa, entre o palco e a vida. É bem verdade que as representações de Numa Ciro e Maria do Socorro já não se diferenciavam no início: ambas eram performáticas e não havia distinção entre elas com relação à maneira de se vestir e de se colocar no mundo, o que não causa espanto, se partimos do pressuposto de que a pessoa é também um artifício (MAUSS 2003). A partir do momento, entretanto, em que a figura de Numa Ciro se tornou hegemônica, houve uma continuidade mais assumida entre arte e vida, entre noite e dia, pois as atividades de Numa Ciro, a artista, se conectaram de vez com as da intelectual Maria do Socorro. Este tipo de opção foi responsável pela guinada de Numa Ciro para uma carreira adicional na área de Letras.
Não me parece, entretanto, que a psicanalista Maria do Socorro se coloque num mundo à parte, alheia à realidade do espetáculo, ou que as figuras engendradas a partir dela se transformem em heterônimos, à maneira de Fernando Pessoa. O encontro da psicanalista com a performer é evidente, por exemplo, nas lembranças evocadas por ela das experiências de infância e adolescência, em que ajudava a mãe na costura. Sua mãe costurava, ela fazia o serviço de mão e as duas cantavam juntas enquanto trabalhavam. Assim, em entrevista concedida ao grupo de pesquisa do qual participo, afirma que já existia algo de Numa Ciro na “vivência desde criança de cantar em casa”. Ela relata que, algum tempo atrás, lendo a biografia de Freud, soube que ele “adorava Yvette Gilbert, uma cantora parisiense amiga de Toulouse-Lautrec”, e que Toulouse-Lautrec ia aos lugares onde ela se apresentava e a desenhava, imortalizando-a com as luvas pretas que vemos nas ilustrações. Ao ler a história de Yvette, descobre que “a mãe dela era costureira, que ela costurava junto com a mãe e que elas cantavam”.
Numa Ciro apresenta um perfil polissêmico, e não foi apenas Maria do Socorro que o inventou; trata-se de uma criação conjunta, com a participação do artista plástico Hildebrando, da compositora-cantora Tânia Christal, que lhe doou inclusive o nome, e do músico Flaviola. Tânia Christal, que dividia com ela um apartamento em Recife, inventou Numa Ciro para si própria, procurando articular um nome de mulher que jogasse ao mesmo tempo com o feminino e o masculino. Tânia não fez uso do nome, pois interrompeu por um tempo sua carreira musical e foi morar na Europa. Assim, numa das ligações telefônicas entre as duas amigas, Maria do Socorro pediu a Tânia que lhe cedesse o nome Numa Ciro, no que foi atendida.
Acompanhando a sua trajetória desde a década de 70, vemos que Maria do Socorro alternava não só a moradia entre Campina Grande e Recife, como também os papéis de acadêmica — como professora de psicologia inicialmente na Universidade Estadual da Paraíba, e depois no Departamento de Educação da Universidade Federal da Paraíba — e de atriz de teatro. Iniciou sua carreira teatral em Campina Grande com o nome de Socorro Brito, na peça Quinze anos depois, de Bráulio Tavares, dirigida por Hermano José; em seguida atuou no monólogo Fiel espelho meu, da dramaturga paraibana Lourdes Ramalho; e por último contracenou com Selma Tuareg na peça Escombros eletrônicos — um show de anormalidades. A partir dessas experiências teatrais, começou, em 1984, a assumir o palco como cantora e performer. A primeira apresentação foi no show Tangos fados e boleros punks, que fez com Diomedes “O Dedo de Ouro do Nordeste”, no Bar Visual, em Campina Grande. No ano seguinte, sob a direção de Carlos Bartolomeu, fez o show Carta fatal no Teatro Paulo Pontes, em João Pessoa.
Fez sua estréia no Rio cantando “Surabaya Johnny”, de Kurt Weil e Brecht[2], na Academia Brasileira de Letras. Ligada a um grupo de atores e poetas da chamada “Poesia pornô”, do qual participavam, entre outros, Leila Miccolis e Kairo Assis Trindade, participou do projeto que se chamou Alcova Brasileira de Letras, que realizou apresentações do grupo na ABL. Numa relata:

A Tânia Cristal veio para o Rio antes de mim e conheceu o Hildebrando. Ela falava dele para mim e dizia que ele é um grande artista e que tem tudo a ver com a nossa cabeça, com a nossa vida e com as nossas coisas. Ela intuiu assim uma história entre eu e ele. E quando eu cheguei ao Rio em 85 ela nos apresentou e ficamos amigos. Em 86, quando me convidaram para fazer esta performance, nós resolvemos fazer juntos. E por acaso surgiu a história de ele me pintar nua e de eu cantar. A personagem, a persona Numa Ciro nasce ali, pois dali em diante ela tem corpo diferente e imagem diferente. Ela nasce mesmo sem ser nomeada ainda, mas é ali que está a Numa Ciro.
Eu chegava nua no palco, com um véu, ele botava o véu em mim.... Eu passava pasta d’água no corpo para dar uma tonalidade, uma transparência, para não ser carne mesmo. Ali ele me preparava como se eu fosse tela. Eu entrei no palco com o Austregésilo de Athayde na platéia assistindo. Tinha uns acadêmicos ao lado dele. O Hildebrando me pintou uma bomba atômica no corpo. Eu cantava “Surabaya Johnny” com o cabelo curto todo arrepiado, vermelho.

O primeiro contato com Numa Ciro me causou a impressão de que sua persona seria construída a partir de uma identidade gay, talvez pelo fato de tê-la visto compartilhar o palco do Sérgio Porto com travestis em algum momento do início dos anos 90. Por outro lado, tínhamos à época vários amigos gays em comum, e todos, sem exceção, a admiravam. Pensei logo em Susan Sontag (SONTAG 1987) e sobre a possibilidade de Numa Ciro ser tomada, por um certo reduto gay do Rio de Janeiro, como uma espécie de ícone da sensibilidade camp, tal como Carmem Miranda foi incorporada por gays nova-iorquinos. À medida, porém, que fui acompanhando mais o seu trabalho, passei a reconsiderar a impressão inicial, ponderando que o entendimento da estética de Numa Ciro por critérios de opção sexual em muito estreitaria o seu alcance, principalmente se consideramos a maneira como ela lida com a diferença. As questões relativas às novas agendas políticas e culturais são contempladas por Numa Ciro ao realizar a sua proposta estética e construir a sua personalidade artística, já que o universo em que atua é singularizado pela presença de minorias tanto étnicas quanto sexuais. Mas ela não se prende, entretanto, a uma configuração específica, parecendo buscar, pelo contrário, elementos de diferentes repertórios, tanto os fornecidos por tradições locais, brasileiras ou estrangeiras, quanto os disponíveis por informações provenientes do mundo globalizado.
Assim, observei que este procedimento de Numa Ciro de lidar tanto com o local quanto com o universal em muito evoca a estética da tropicália, no sentido de ter um pé em Campina Grande, sua cidade de origem, e outro tanto no mundo erudito da biblioteca de Borges quanto no submundo dos cabarés. A referência a Campina Grande não significa um apelo a regionalismos, até porque a cidade, tal como descrita por Numa, é ela própria uma junção de contrários, oscilando sempre entre o provinciano e o cosmopolita. É o que diz a letra de “A feira de Campina”, canção que Numa fez em parceria com Hermeto Paschoal, em que artefatos artesanais e identificados com a cor local, como a “calunga de pano” e a “panela de barro”, convivem com objetos modernos — e até mesmo “fashion” — legados pela tradição técnica ocidental:



NOVENA

OU

A FEIRA GRANDE DE CAMPINA GRANDE




Hermeto Pascoal / Numa Ciro



Quero lhe mostrar nessa cantiga:

Foi na feira de Campina onde o mundo se criou.

Ouça com atenção! 

Na minha vida, não vi coisa mais divina

Quando um cego anunciou:


Quem se aventurar nesse mercado

Deixe aqui o seu trocado

Pelo nome de Jesus.

Eu não tive a vossa alegria

De ganhar a luz do dia

A cegueira é minha luz.


Quase num milagre a vista alcança

Os detalhes de uma trança de cebola ou alfenim.

Acocorando escolhe coisinhas de barro

Só pensando na virtude desta mão que fez assim.

No labirinto do roteiro encomendado

Inverte a ordem do traçado quem começa pelo fim.


Corro na barraca de Zumira,

Vou buscar a lamparina,

Severina encomendou.

Olho para os lados, vejo briga,

Não é nada, é a pechincha,

Nada besta o comprador. Quero visitar seu Aluísio,
Comprar queijo de manteiga 

Apelidado de Romeu.

Quando ele se junta 

Com o doce de goiaba,

Julieta,

Casa quem disso comeu.


Para comprar bode novo, tem lei
Pai-de-chiqueiro, cuidado! 

O cheiro é desagradável demais, porém

Buxada é prato de rei.

Pois é!


Dê outra volta pra gula vestir

Carne-de-sol posta em mantas

E as linguiças, gravatas, são fashion, say,
Luiz cantou isso outra vez.

Calungas de pano,
Panelas de barro,
Jarrinhos de louça,
Vestidos engomados.
Pro recém-nascido: toquinha e casaco,
Lá na tenda do cigano há quem leia o passado.
Futuro é do tempo,

Querer é de agora,

Quem vem nessa feira vadia pela hora.
Quem pega em rodilha não teme o balaio,
Fumo de rolo e cachaça espanta o cansaço.
Quanto cobra pelo frete?

Eu lhe pago em dobrado

E dou mil pro assovio.


Jabuticaba, cajá, mimo-do-céu, 
Abacaxi, macaíba,
Quebra-queixo, pitomba, castanha e mel,
Pé-de-moleque e beiju. 


Côco-catolé, caju, sapoti,
Fuba de milho, sequilho, soda,

Mandioca, inhame, maxixe, umbu,
Manteiga-da-terra e caqui.


Não deixe a feira sumir
Não deixe a feira acabar

Campina Grande é ali

Grande é a feira de lá


Irene, num quadro, a feira imortalizou.
Irene não morre.
É imortal quem pintou.


Na Feira Grande de Campina Grande canta

Asa Branca, Miudinho, Bem-te-vi, meu Sabiá

Até o Galo de Campina se casou com a Noivinha Coroada

E fizeram ninho lá.

Na Feira Grande de Campina Grande canta

Velho moço e criança, qualquer homem ou mulher.
Até um surdo se esqueceu que era mudo

E de repente cantou tudo,
Só não canta quem não quer.

Pra quem quiser tocar na feira,
Na feira encontra a condição.
Tem fole e sopro cordas e teclas,
O que não falta é percussão.

Para os devotos rezarem Novena,
Da feira sai a procissão.
A catedral é bem pertinho.
A Padroeira é Conceição.

A canção programática “Meu nome é Numa Ciro”, de sua autoria, que ela fez em “resposta” ao desafio “Meu nome é Trupizupe”, de Bráulio Tavares, tem a forma do martelo agalopado, metro típico da poesia popular nordestina: versos decassílabos em que o acento recai sobre a terceira, sexta e décima sílabas. Vejamos a estrofe introdutória, em redondilha maior, na qual a autora se apresenta à maneira do repentista nordestino:

Meu nome é Numa Ciro
Sou a relva da campina
O meu nome é Numa Ciro
A providência divina

            Em seguida, Numa Ciro introduz a primeira estrofe:

Pra cantar desafio estou contigo
Oh poeta que temo e admiro
Estatura não tenho mais prefiro
Ser o anjo que afasta o inimigo
A morada do amor é meu abrigo
O desejo da rima é combinar
O sentido do mote está no ar
Quem pegar na palavra diz o seu
Quem pensar que eu não canto, escute o meu
É com ele que vou me apresentar.

                Com relação a questões propriamente temáticas, observamos que, na quinta estrofe, a imagem bucólica da “água que chove no roçado” convive com “o remédio que mata a bactéria”, assim como a “rima das sextilhas” do cordel rima com “Alice no País das Maravilhas”. Nas dez estrofes que compõem a letra, acompanha-se a tessitura da persona de Numa Ciro através de elementos díspares em franco diálogo, vinculados tanto à “tradição” quanto à “novidade”. A estrofe número 9, por exemplo, comenta de maneira bem humorada a voga da internet:

Só se fala atualmente em internete
Endereço eletrônico navegar
Comunica quem aprende a sitiar
Uma bomba que não mata mas impede
A conversa cara a cara sem confete
Pois eu acho esse papo muito sério
Manuscrito vai perder o seu império
Sobre isto escrevi sem nostalgia
Pra não ter nem o atraso de um dia
Eu mandei-o para Bráulio por é-méio

                A última estrofe (número 10), revela a identidade constituída por elementos da “alta” e “baixa” cultura, do erudito e do pop:

Aprendi com minha avó quando menina
A fazer da cantoria vocação
Assistindo  “Retalhos do Sertão”
Na rádio Borborema de Campina
Zé Limeira confirmou a minha sina
James Joyce com Homero foi casado
Guimarães Flor Lispector encantado
Eu não posso viver sem escritura
Se transforma em criador a criatura
Quando eu canto martelo agalopado.

Assim, a Campina Grande representada por Numa Ciro lembra a interpretação do Brasil feita por Oswald de Andrade no “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, em que o que há de mais associado às raízes, como as cantigas de ninar, se adiciona ao “melhor de nossa demonstração moderna”, do jornal aos “cubos de arranha-céus” (ANDRADE 1972). Mas nos dois casos — a Campina Grande de Numa Ciro e o Brasil de Oswald de Andrade — não se articula uma síntese harmoniosa, porém mantêm-se os elementos antinômicos em constante tensão. Os elementos da cidade vinculados a uma certa tradição do que reconhecemos como “nordestina”, e mesmo “patriarcal”, são arrolados por Numa: do colégio de freira, onde estudara, e onde “tudo era proibido”, despertando o desejo de lidar com o que era interditado, aos bordados extremamente trabalhados que aprendera com a mãe. Já as contribuições da cultura pop internacional aparecem num primeiro momento com as revistas em quadrinhos, principalmente as fotonovelas. Citando trecho da canção “Livros”, de Caetano Veloso — “Tropeçavas nos astros desastrada/ quase não tínhamos livros em casa/ E a cidade não tinha livraria”[3] —  Numa Ciro relata que teve o primeiro contato com a literatura — Ana Karenina, Pimpinela Escarlate, O corcunda de Notre DameA dama das camélias, Hamlet — através de fotonovelas. E refere-se também ao cinema, que aprendera a cultuar com uma tia, principalmente os filmes italianos com Sofia Loren e Gina Lollobrigida. 
Como compositora (letrista), Numa Ciro fez diversas parcerias com Flaviola, e algumas com Hermeto Paschoal e Tânia Christal. Quando traduz, recria o texto original. Vejamos como ela própria discorre sobre este procedimento na seção 9 de “O canto a voz a palavra: anotações sobre a arte de dizer cantando”:

Adoro fazer versões. Tanto para canções apenas instrumentais, como para aquelas que já possuem letras, na minha própria e em outra língua qualquer. Por exemplo: Replicante (“One More Kiss, Dear”), de Vangelis, do filme Blade Runner; “Libertango” de Piazzolla; “Numa Serenata” de Luiz Gonzaga. Faço um sampler, de trechos ou da música total. Gravo a base do disco original e canto por cima da base, nas performances e nos espetáculos. Algumas vezes mantenho na base a voz de um cantor cantando na língua original. Canto por cima e com isso descobri efeitos intertextuais muito interessantes.

Como intérprete, recorre a repertórios de poetas modernistas, nordestinos, dramaturgos e músicos contemporâneos, conseguindo sempre promover a conciliação de contrários, como a poesia de cordel de Bráulio Tavares com trechos de Ulisses, de James Joyce. No texto citado acima, Numa Ciro também fala sobre as suas escolhas:

Minha pesquisa abrange todo e qualquer gênero musical. Do repente ao rap, da valsa ao rock, do blues ao frevo, e por aí afora, estabelecendo uma relação entre o cancioneiro popular brasileiro e o estrangeiro, o popular e o erudito, criando com isso um mosaico provocador e universal. Além de meus próprios textos, trabalho com os textos de autores da literatura, entre os quais James Joyce, Guimarães Rosa, Ionesco; da poesia, João Cabral, Tavinho Teixeira, Haroldo e Augusto de Campos, Augusto dos Anjos, Neide Archanjo, e muitos mais. Já incluí em meu repertório um trecho do livro As palavras e as coisas de Michel Foucault (aquele em que o autor descreve o quadro As meninas, de Velázquez).

É interessante observar a maneira como Numa Ciro, ao se constituir como persona, faz uso dessas informações contrastantes, procurando, como no processo criativo de uma colagem, dispor os elementos díspares a partir de uma determinada concepção. No caso, o ponto articulador seria a noção de “periferia” que, para Numa Ciro, significaria tudo aquilo que ela via, ao longo de sua experiência, como excluído do modelo cultural dominante, como a ambiência dos cabarés e as mulheres que os freqüentavam, e o espaço reservado às empregadas domésticas dentro das casas e da hierarquia social. Assim, a sensibilidade tropicalista é revisitada através da união de contrários, porém atualizada, ao escolher os repertórios a serem incorporados, dos locais aos universais. Por exemplo, um dos ingredientes dominantes, a tradição estrangeira da chanson, principalmente a do cabaré alemão, mostra-se em constante diálogo com a folclórica e com o pop que chega a Campina Grande em forma de kitsch.
Trata-se, sem dúvida, de lidar com a tradição kitsch do melodramático, mas de uma maneira estilizada, recorrendo a recursos que lembram o expressionismo alemão. Numa Ciro, no palco, depura o teor dramático das canções. O uso da máscara e do figurino contribui para o efeito de distanciamento, o que também sugere uma apropriação da proposta dramatúrgica de Bertolt Brecht. Como vemos, tudo parece dialogar com a tradição alemã. O rosto, sempre pintado de branco, faz ressaltar os olhos coloridos e redesenhados em preto. E o semblante criado no palco afasta qualquer possibilidade de representação naturalista; tudo é artifício, tudo é representação teatral. Por outro lado, a adoção do estilo cool não lhe retira o senso de humor: Numa Ciro reúne o melodrama pop, o teatro alemão (o expressionista, o brechtiano e o esquete popularesco de cabaré) e a carnavalização tropicalista. Neste aspecto, tudo indica que há um traço camp em Numa Ciro, principalmente se tomamos em consideração a sua atitude de lidar ironicamente com o kitsch. Mesmo porque a sensibilidade camp, detectada por Sontag no meio de certas “igrejinhas” culturais — e homossexuais — de Nova Iorque, seria fundamentalmente antitrágica, anti‑séria e jocosa. Uma postura reveladora desse tipo de atitude seria uma incorporação divertida do kitsch, como, por exemplo, através do ato de deixar à mostra, na sala de visitas, um artefato “típico” do Rio de Janeiro vendido em loja para turistas. O camp, aliás, só se realiza, segundo Sontag, com a incorporação do kitsch (SONTAG 1987:318/33).
Retomo aqui o argumento que deu início a este ensaio: ao incorporar a intelectual Maria do Socorro à sua persona, Numa Ciro promoveu uma junção definitiva entre arte e vida, entre palco e cotidiano. A atitude performática de Numa Ciro traz à baila alguns questionamentos sobre o estatuto da obra de arte e do próprio artista que muitos classificariam como “pós-modernos”. Se não é possível, para os que comungam este ponto de vista, pensar um espetáculo artístico que se pretenda só musical, ou teatral, ou mesmo visual, ou que não vislumbre a participação do espectador como co-autor, e não apenas como fruidor, também não seria possível pensar a presença do artista no palco a não ser como não-presença, ou seja, como não-autor, como uma persona que se constrói recorrendo a diversos textos de diferentes vozes (ver LOPES 2003). Creio que é mais razoável vê-la como uma artista numa acepção mais ampla, uma performance artist na tradição inventada por figuras que, como Laurie Anderson, romperam com o enquadramento convencional do palco. No palco, Laurie Anderson, embora se apresente como tal, e embora muitas de suas canções e falações sejam na primeira pessoa, nunca é exatamente Laurie Anderson: está claro que boa parte do que ela conta e canta é fictício, e a voz que ouvimos é com freqüência distorcida ou engrossada eletronicamente; em última análise, sua performance ao vivo não é exatamente ao vivo, já que alguns dos sons que a platéia ouve foram previamente gravados ou preparados. Assim, algumas distinções categóricas — entre real e ficção, presença e ausência, autêntico e fingido — são desmontadas durante seus espetáculos.
Numa Ciro apresenta uma identidade múltipla, o que torna difícil defini-la. Sua atuação não se restringe à atividade de intérprete, ou mesmo de compositora, principalmente porque ela faz uso da performance. O corpo atua como escrita, como linguagem; assim, sua persona se constrói através do figurino, da música, da encenação e da poesia, como ela explica em “O canto a voz a palavra”:

o monólogo cantante ou o solo cantátil é um espetáculo de canto a capella, isto é, sem acompanhamento instrumental, onde a voz é o principal elemento de sustentação do espetáculo, concretizando uma linguagem cênico-musical em que são incorporados elementos do teatro, da dança, das artes plásticas, da poesia e da literatura.
A partir do canto, a criação dramática busca uma expressividade que os elementos interpretativos fundamentam. Assim, o diálogo entre o roteiro musical e a encenação transforma cada canção, cada texto ou poema numa composição de quadros que se sucedem no desenhar dos gestos e intenções.

E paradoxalmente — o que faz o encontro entre a psicanalista (não por acaso lacaniana) Maria do Socorro e a performer Numa Ciro atingir o paroxismo — a figura construída põe-se a desconstruir uma possível identidade fixa e a própria noção de autoria. Este procedimento é claro em “Meu nome é Numa Ciro”, composição citada anteriormente. À maneira de Caetano Veloso, que responde à canção afirmativa de Gerônimo com relação à identidade étnica e sexual, “Eu sou negão”, com “Eu sou neguinha?”[4], canção que prima pela incerteza e pela indefinição, Numa Ciro responde ao espírito intimidativo de “Meu nome é Trupizupe”, de Bráulio Tavares, que prima pela caracterização forte do nordestino, com o aspecto indeterminado de uma paraibana cosmopolita. Esta atitude desconstrutiva é descrita de maneira programática em “O canto a voz a palavra: anotações sobre a arte de dizer cantando”, quando Numa Ciro diz: “canto textos poéticos e literários, e declamo canções”.  
Numa Ciro me contou algo que lhe aconteceu em Paris há algum tempo. Estava numa livraria e foi abordada por uma francesa que lhe perguntou: “Você é espanhola?” Numa disse que não, que era brasileira. A interlocutora então lhe disse que ela parecia uma personagem de Almodóvar. Eu disse a Numa que discordava da francesa, pois, na minha opinião, ela teria semelhanças com o próprio Almodóvar.  

Referências bibliográficas:
ANDRADE, Oswald. “Manifesto da poesia pau-brasil”. In Do Pau-Brasil à Antropofagia e às utopias — Obras completas-6. Rio de Janeiro, MEC/Civilização Brasileira, 1972, pp. 3-10.
CIRO, Numa. “O canto a voz a palavra: anotações sobre a arte de dizer cantando”. Mimeo. S/d.
LOPES, Alexandre Herculano. “Performance e história (ou como a onça, de um salto, foi ao Rio do princípio de século e ainda voltou para contar a história)”. In O Percevejo — Revista de Teatro, Crítica e Estética. Ano 11, nº 12, UNIRIO, Rio de Janeiro, 2003, pp. 5-16.   
Mauss, Marcel. “Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa” [1938] In Sociologia e antropologia. São Paulo, Cosac & Naify, 2003, pp. 169-397.
SONTAG, Susan. “Notas sobre o camp”. In Contra a interpretação. Porto Alegre, L&PM, 1987.






[1] Agradeço a Numa Ciro, de uma certa forma co-autora deste texto, a Kate Lyra e Ana Ana Luiza Martins-Costa, que realizaram comigo a entrevista com a artista (em 12 de outubro de 2006), a Claudia Oliveira, por ter me estimulado a falar sobre Numa Ciro, a Antonio Herculano Lopes, por ter me auxiliado a pensar a performance, e particularmente a Paulo Henriques Britto, pela sua assessoria para questões de versificação, entre outras.
[2]  Música da comédia musical Happy end, de Kurt Weill e Bertolt Brecht, de 1929.
[3] CD Livro. Polygram. 1997.
[4] LP Caetano Veloso, de 1987. Philips. 

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