terça-feira, 17 de junho de 2014

OS SETE PECADOS CAPITAIS EM CANTORIA NORDESTINADA




 Coletivo Independente de Teatro
Uma releitura de Berthold Brecht em cena




A Gemedeira dos sete pecados
na capital dos pecadores sem pecado


 Por Numa Ciro

Música - do repente na modalidade da Gemedeira





I
A preguiça


Na floresta da preguiça
de Anouck Boisrobert e Louis Rigaud
Bruaá, 2012
a partir dos 3 anos



Eu gemia de preguiça
dia e noite, noite e dia.
Gemo ainda, em todo canto,
no quarto, na livraria.
Gemerei por toda vida!
ai ai    ui ui 
A preguiça é minha guia.


O gemido é mais gostoso
se eu mastigar devagar.
Com preguiça bebo água
e me arrastando, tento andar.
Gemerei na terra inteira!
ai ai    ui ui
a preguiça é o meu lugar


Gemo alto de preguiça,
gemendo me sobressalto.
Gemo baixo quando canso.
Diz mexer, escuto assalto!
Gemo de tudo e de nada
ai ai    ui ui 
a preguiça é meu asfalto.


Só adormeço gemendo,
acordar é pesadelo.
Fazer sexo é cansativo.
Sonhar, nem de brinquedo!
Gemo sem fim, sem parar
ai ai    ui ui,
a preguiça é meu levedo.


Estou com a fome canina.
Chamo gemendo mãinha.    
Responde a mãe, carinhosa:
- Traga seu prato, filhinha!
Não quero mais, já passou.
ai ai    ui ui,
me cansa ir até a cozinha.



II
A Gula


Uma Despensa
Adriaen van Utrecht, 1642


Eu mastigo sem parar.
Como sempre o tempo todo.
Meu apetite é voraz:
ganho do padre e do lobo.
Eu só penso em guloseima,
Ai ai ui ui,
a gula é meu farto consolo.

Já nasci chupando os dedos.
Mamei em mamãe e na ama;
nas visitas à vizinha
de resguardo em sua cama.
Mamei até nas cabrinhas!
ai ai, ui ui,
gulodice me deu fama.

Criança sedenta e faminta,
só brincava de casinha.
Era sempre a cozinheira
e até a boneca, tadinha!
vivia com sede e com fome,
Ai ai, ui ui ui,
me chamavam gulozinha.

Só compro em lojas que têm
utensilhos de cozinha:
Copo, prato, guardanapo,
comida pronta, quentinha,
bebida de todo tipo,
Ai, ai, ui, ui,
não quero outra vidinha.

Quando vou ao shopping center,
não vejo roupa nem jóia;
não compro nada pro quarto;
oh! doce de paranóia.
Eu salto sem pára-quedas,
Ai, ai ui, ui,
mas num nado sem a bóia.



III
A Ira


Vejam e ouçam bem alto 
Odeio Você
Caetano Veloso
https://www.youtube.com/watch?v=P_gQQHa2F94



Vivo da ira que eu tenho
de tudo que há nesse mundo.
Odeio mamãe e papai.
Dos Irmãos, ódio profundo.
A ira pulsa em cada nervo
ai ai    ui ui 
do meu coração vagabundo.


Irado meu choro ao nascer.
Não conheço compaixão.
A flor do ódio cultivo:
levo um cacho em cada mão.
De raiva pretendo morrer,
Ai ai    ui ui  
Flores do mal no caixão.


O ódio danado qu’eu tenho
cresceu com as ervas daninhas,
nascidas no abandono
de amores perdidos, filhinhas.
Os frutos maduros colhidos,
ai ai    ui ui
divido com as minhas vizinhas.

As sementes dessa ira
fecundo em latinhas de ódio.
Nas estufas do silêncio
cultivo-as como-se-fossem-d’ópio.
Odeio a bondade e a fé
ai ai    ui ui
eu fumo a ira no pódio.


Apago as estrelas da noite.
Quebro a varinha de condão.
A fada madrinha eu enforco,
Papai Noel pro lixão
com saco e tudo que há dentro
Ai ai    ui ui,
só guardo a raiva do cão.



IV
A Inveja

Hildebrando de Castro

  
Eu me mato de inveja,
de quem vive sem sofrer
e tem tudo e mais um pouco,
ganhando a vida ao nascer.
Herdei a inveja de tudo
Ai ai    ui ui,
que está fora do meu ter.


Invejo as pernas da misse
e a cintura de pilão
Quero os peitos de Tieta
ser a musa da canção
e ouvir, por onde passar,
ai ai     ui ui 
“Eu derrubo esse avião”. 


A inveja me consome,
quando não tenho o que eu quero.
Minha inveja tem os nomes
das coisas que mais venero.
Cobiço as mulheres alheias
ai ai    ui ui,
Inveja é meu par no bolero.


Quando entrei naquele quarto
eu vi com a inveja dos mortos
mamãe mimando outro filho
no meu cantinho em seu colo
papai olhando os seus braços
ai ai    ui ui
furei meu pai bem nos olhos.


Saí de casa bem cedo
pra ter inveja bem longe.
Inveja das que cobiça
tudo e todos quando e onde
aparece o que desejo
Ai ai     ui ui
Pela inveja eu virei monge.



 V
A luxúria

luxuriachei na Internet 


Eu acordo e me apaixono
e passo o dia com vontade.
À tarde me pego querendo,
a noite inteira, é verdade!
Eu vivo nadando em prazer
ai ai, ui ui,
em luxuri-oh-cidade...


Em tudo que há nesse mundo,
que qualquer um diz: bom, bons,
existe um mal que eu não troco
nem vendo a imagem dos sons.
O bem e o mal no meu  bloco
ai ai    ui ui
gozam dos dons e nos tons.


Só de pensar me dá luxúria
nas pernas, no olhar e nas ideias
e o corpo brinca com a alma
de vadiar nas boleia
dos caminhão nas estrada
ai ai    ui ui
pra ter gozo de plebeia.


Como gozarão as santas?
E a onça em pleno cio?
Psiu, não geme tão alto,
te vira na lata, amor mio!
cachorra que gosta de funk
ai ai    ui ui
pega o trem no assobio.


Caço a noite atrás do dia,
o rabo é quente, é um açoite.
Quem trepa na cama dos outros
não teme lâmina, nem coice.
O cu dos outros não é o nosso,
Ai ai    ui ui,
luxúria nossa de cada noite...



VI
A Avareza




 Eu quero tudo pra mim.
Não abro a mão para dar.
Só bebo a seiva da vida,
nem a morte vai tomar.
Eu tranco a vida no cofre
Ai ai    ui ui
Avareza vai guardar.


Nem Moliére dormindo
no seu avaro colchão
sonharia com um personagem
sovina que nem meu vilão
que tem  medo de perder
Ai ai    ui ui
até a poeira do chão.


O meu nado sincronizado
no lago de ouro derretido
cunhou a moeda talismã
de tio Patinhas, no vestido.
Pra fantasia avara
Ai ai    ui ui
A riqueza é o tecido.


Mesquinho, mão fechada,
mão-de-vaca, pão-duro e avarento.
São nomes para quem pega
carona nas costas do vento
Ai ai    ui ui
E não dá nem um por cento


Uma avara que nem eu,
que tem vergonha de ser,
é uma vara envergada
nas avarenças do ter
ela só sente a avareza
ai ai    ui ui
quando ela teima em são ser.



VII
 A Soberba


Muralha da china

Doris Monteiro arrasando 
em Mocinho Bonito de Billy Blanco
https://www.youtube.com/watch?v=sk9EiVxngeI&feature=kp


Eu tenho orgulho de mim
e de tudo o que é meu.
Eu tenho mais é que ter
tudo que querem meus eus:
eles só pedem ao mundo
ai ai    ui ui
o mundo todo e até Deus.


Ninguém merece o prazer
que a vida a mim me oferece.
A minha vida se farta
na delícia que se esquece
de tudo e de todos, nem desce!
ai ai   ui ui
a vaidade me aquece 


O orgulho e a presunção
são  balinhas de festim,
se os comparo à arrogância,
projétil largado de mim.
A tirania é meu forte
ai ai    ui ui
Eu prendo e mato tudim. 


Eu sou melhor que você.
Ninguém consegue alcançar
o lugar onde eu cheguei,
de onde eu posso mandar.
Mando no reino e no rei
ai ai    ui ui
Mando o bicho te pegar.


A soberba é minha força
A vaidade me anima
No orgulho eu me sustento
A prepotência me estima
da tirania eu extraio
Ai ai    ui ui
As truculências da rima